quarta-feira, 10 de junho de 2009

Adaga


O vento trazia à tona todas as lembranças que, por um breve momento, jaziam profundamente em algum lugar empoeirado e escuro. Estava segura em um quarto de motel, aquecida pelo corpo de um desconhecido, cujo nome nem poderia imaginar. Sentia a respiração longa e serena daquele cujo rosto não recordava, dormindo o sono dos inocentes, perdido sob o manto de Morfeu. A luz da lua cheia seria inspiradora, se os pensamentos não a consumissem como predadores famintos de sangue. Mal conseguia conter-se, derramando lágrimas silenciosas, que amornavam seus lábios gélidos, enquanto as horas passavam vagarosamente. Não sabia o que estava fazendo naquele lugar, que a cada minuto parecia mais hostil e desconfortável.

Resolveu levantar-se, desvencilhar-se daquele abraço quente, aconchegante e vazio. Já não conseguia mais encarar o homem que calmamente jazia. Tocou-lhe os cabelos, que cobriam parte de sua face, e beijou-lhe o pescoço, sentindo a textura macia de uma pele fina e vulnerável. Já não poderia evitar. Tudo o que causara, tudo o que a assombrava, tudo estava perdido em um passado que, como pesadas correntes em torno de seus braços, arrastava consigo. Não poderia fugir do que era, não poderia inventar mentiras para si mesma, cravando a adaga cada vez mais fundo em seu peito, fazendo jorrar palavras e imagens indesejadas.

Sorveu-lhe a vida, como fizera diversas vezes, deleitando-se com o sabor de uma alma perdida, que gemia ao entender que nunca mais a veria. Invadida pelo êxtase de uma conquista e de uma derrota inevitáveis, a dor mascarada pelo ato de limitar-lhe a existência tornava-se insignificante. Após a última gota, a superfície de seu amante era de um palor que remetia à sua mãe, reluzente, que a tudo observava através da janela aberta. Sem culpa ou remorso, tomou-o para si, aninhando-o em seu peito como uma criança desamparada. Beijou-lhe a face, um beijo de boa noite. Uma noite sem sonhos.